Como entender a partilha das fronteiras africanas
Livro Utilizado
DÖPCKE, Wolfgang. “A vinda longa das linhas retas: cinco mitos sobre
as fronteiras na África Negra.” In Revista Brasileira de Política
Internacional, 42 (1): 77-109, 1999.
O autor começa o texto delimitando os objetivos do seu trabalho, estudando as
fronteiras políticas na África Negra nas suas dimensões históricas e atuais.
Explicando a noção de fronteira, e diferenciando-a da noção americana e
européia, pois conceitos como esses devem ser analisados antes de aplicá-lo ao
contexto africano. Com essa análise, o autor sugere que o conceito europeu deve
ser aplicado por ter maior semelhança com o conceito africano, demostrando que
o conceito de "linhas", ao invés do de "zonas",
é o melhor jeito para se entender o conceito africano de
"fronteiras", assim “descrito nas palavras em um tratado, e/ou
mostrado em um mapa ou em uma carta, e/ou marcado na terra pelos indicadores
físicos [...]. Um limite não tem nenhuma largura e uma reunião dos limites
[...] envolve um ponto e não uma zona de soberania comum.” (DÖPCKE,1999, p.
77). Ou seja, o conceito de "zonas" não tem como ser aplicado
no contexto africano, o autor defendo que o conceito de "linhas"
foi bem utilizado, pois no contexto histórico africano essa noção já era
utilizada, mesmo antes da divisão européia, com isso ele definirá o conteúdo do
seu trabalho neste setor, conferindo e discutindo os mitos que por ele foram
definidos sobre as fronteiras africanas. Argumentando que na África
pré-colonial existiam claras noções de limites dos espaços políticos; que a
ação da Conferência de Berlim na delimitação das fronteiras foi muito limitada;
e que a população africana que vivia perto das fronteiras tentou aproveitar-se
das mesmas e manipulá-las para melhor convir aos seus interesses e que as
fronteiras não representaram um fator importante nos conflitos entre os
Estados.
Döpcke dividirá sua argumentação em cinco mitos, que serão resumidamente
explicitados, espero ajudar e aguardo comentários.
Mito 1: O conceito de fronteira política é alheio às comunidades africanas
pré-coloniais e foi “importado” do contexto cultural ocidental
Dois argumentos importantes que são amplamente discutidos nos debates acerca do
assunto, mostra elementos que contradizem o autor, contudo ele irá refutar,
dizendo que o estado era definido politicamente.
O primeiro destes argumentos foi “um aspecto importante do argumento de que
as fronteiras modernas do continente africano são “artificiais” é a afirmação
de que ou as fronteiras políticas em si mesmas, ou o conceito de fronteira como
linha reta, não existiam na África pré-colonial” (Idem, p. 78). Com isso,
vemos que um argumento da diferença entre fronteiras é a teoria que, o homem
era o ‘bem escasso’ na época pré-colonial, e não a terra, mas esse argumento é
problemático, pois os africanos precisavam de terras para sobreviver, “existem
nas mais diversas fontes, fortes indícios de que sociedades africanas tinham
uma clara noção de territorialidade, inclusive de fronteiras” (Idem, p.
79), dando fortes exemplos dessa característica.
O segundo argumento fala "sobre o desconhecimento do conceito de
fronteira na África pré-colonial se refere ao tipo de fronteira” (Idem, p.
80). Com esse argumento, o autor quer mostrar que o as populações africanas
antes do colonialismo conheciam o conceito de fronteira tipo zona e não linha,
mas os exemplos que o autor dar e outros que ele cita refuta não completamente
esse argumento, pois segundo o autor: “é importante sublinhar que, para o
continente como um todo, a fronteira ‘importada’ não representava uma novidade
absoluta” (Idem, p. 81).
Contudo as fronteiras pré-coloniais separavam entidades políticas, de diversos
tamanhos, e não entidades lingüísticas, étnicas ou culturais. “Em regra, as
entidades políticas, sejam elas pequenas chefias ou grandes impérios, eram
menores ou maiores do que as identificações étnicas ou culturais.” (Idem).
Por fim, dentro das fronteiras de alguns estados ou impérios não existia apenas
um “identidade cultural”, mas continham outras, o Estado era contudo definido
politicamente e não culturalmente.
Mito 2: As fronteiras coloniais – e, por conseqüência, modernas – foram
delimitadas na Conferência de Berlim de 1884/85. Naquela Conferência, as
potências coloniais concordaram, também, em estabelecer regras fixas e
consensuais que depois orientariam a chamada Partilha da África
A Conferência de Berlim encontrar-se entre os eventos históricos mais bem explanados.
Mas, erroneamente, lhes é atribuído um papel significativo e absoluto para a
Partilha da África. A visão popular tem as suas origens, na encenação do
acontecimento, “idéias populares e públicas de que na Conferência foi
realizada a Partilha da África, e de que os delegados desenharam no grande mapa
com uma régua as linhas retas que delimitaram as esferas de influência entre as
potências européias foram influenciadas por esta encenação.” (Idem,
p. 82). Outro mito acerca da Conferência esta na idéia “que foram ali
estabelecidas regras e princípios claros para a Partilha da África que se
condensariam no chamado princípio da ‘ocupação efetiva’” (Idem).
Para o autor o que realmente ocorreu na Conferência foi a recusa da França e da
Alemanha em reconhecerem o acordo anglo-português de junho de 1884, assim
Bismarck, descrente da idéia colonial e do livre comércio na África, viu na
desavença entre a Inglaterra e a França uma oportunidade de aproximação com a
França. Embora limitando o engajamento alemão, ele pensava na dimensão
estratégica européia. “Para ele, as aquisições na África, assim como a
Conferência, somente serviam para impedir o surgimento de um campo inimigo na
Europa dirigido contra a Alemanha.” (Idem, p. 83). Com isso vemos que
Bismarck definiu as três metas da Conferência que era “a garantia de
liberdade de comércio e da navegação nos rios Congo e Níger e a conclusão de um
acordo sobre os critérios de futuras anexações na África” (Idem). Deixando
claro que a reunião não trataria de questões de soberania ou de reivindicações
territoriais.
O autor argumenta que os dois primeiros pontos eram mais “anticoloniais que
coloniais. Procediam do liberalismo comercial e se destinavam contra o
monopólio do comércio colonial.”(Idem) e que “o terceiro ponto criou
uma resolução contraditória ... que foi ultrapassada pela realidade, já na
época da Conferência” (Idem). Segue-se então que a Conferência não ficou
sem impacto popularizando-se junto à opinião pública acelerando assim a corrida
pela a África. “O princípio da ‘ocupação efetiva’, que a Conferência limitou
à costa, adquiriu certa importância durante a partilha do interior do
continente. O princípio, portanto, não foi inventado pela Conferência. Há muito
existia. No entanto, ainda que só houvesse sido formulado para o litoral, a
aplicação do princípio estendeu-se, na prática, ao interior da África e aos
protetorados.”(Idem, p. 84)
Assim ele irá mostrar que a maioria das fronteiras “entre os futuros
territórios coloniais, foram estabelecidas consensualmente em acordos
bilaterais após a Conferência de Berlim”. (Idem, p. 85), estes acordos
delimitaram o percurso fronteiriço entre as chamadas esferas de influência de
forma superficial. Foram seguidos por tratados que estipulavam o local exato da
fronteira. Mas em muitos setores o trabalho de demarcação não foi realizado,
provocando, divergências na interpretação da delimitação fronteiriça levando,
em alguns casos, a tensões entre os Estados africanos.
Mito 3: As fronteiras coloniais foram transformadas automaticamente e sem
contestação em fronteiras dos Estados africanos independentes
Ainda que seja verdadeiro notar que o atual trajeto das linhas retas divisórias
entre os Estados africanos tem sua origem no período colonial, a mudança das
fronteiras coloniais não ocorreu sem contestação. Ela resulta “de um
processo político que se desdobrou principalmente entre 1956 e 1963, envolvendo
a nova elite africana bem como as potências coloniais. Conceitos alternativos
que rejeitavam a divisão colonial do continente africano como um modelo para o
futuro foram articulados especialmente durante este período chave da
descolonização.” (Idem, p. 86) Assim, as contestações contrárias a emprego
das divisões coloniais como fronteiras de uma África independente partiram de
perspectivas distintas. “Em primeiro lugar, os nacionalistas contestaram a
delimitação das fronteiras coloniais como algo contrário aos interesses da
população local, muitas vezes etnicamente dividida por fronteiras entre os
Estados... Em segundo lugar, lutava-se em favor da preservação das grandes
federações coloniais francesas na África... e contra a “balcanização” destes
territórios em Estados separados. Em terceiro lugar, a tradição pan-africanista
de unidade africana,... lutava pela superação da divisão política do continente
e em favor de uma União dos Estados, na qual as fronteiras de então só teriam a
função de divisões administrativas internas”. (Idem).
Mito 4: Por causa da sua artificialidade, as fronteiras modernas são
ignoradas na vida cotidiana e na consciência dos homens comuns. Ou,
alternativamente: as fronteiras modernas inibem, efetivamente, o movimento das
pessoas e, assim, acabaram com a tradição pré-colonial de migração, contato e
intercâmbio das populações
Há avaliações relativas às seqüelas trazidas pelas fronteiras modernas para as
populações africanas. “De um lado, argumenta-se que as fronteiras
internacionais obstruíam os movimentos da população... De outro lado, afirma-se
que as novas fronteiras não teriam tido nenhum impacto sobre a vida cotidiana
das populações fronteiriças” (Idem, p. 94). Para o autor “a última
citação está mais próxima à realidade, tanto em relação à época colonial como à
pós-colonial”(Idem). Para ele “seria mais correto dizer que os africanos
se apropriaram das novas fronteiras, já que pouco separavam e ofereciam
diversas oportunidades.” (Idem)
Esse impacto das fronteiras no cotidiano pode ser abordado em dois sentidos. Em
primeiro lugar, pode ser estudado o impacto “nas populações que vivem nas
proximidades das fronteiras e que, muitas vezes, foram divididas entre duas
colônias.”(Idem), Em segundo “a alegação de que as fronteiras coloniais
e pós-coloniais impediriam a migração das comunidades africanas que tanto
caracterizava a situação pré-colonial.” (Idem, p. 95).
Contudo “as fronteiras modernas na África não representaram na época
colonial, nem representam hoje, barreiras efetivas para os movimentos de
população. Eram e são permeáveis, são mais zonas de contato do que de exclusão.
Porém, não estão ausentes da mente e da identificação dos povos. As fronteiras
representam uma realidade na vida das pessoas. Elas são apropriadas, utilizadas
e, no seu significado, permanentemente renegociadas, em vez de simplesmente
ignoradas.” (Idem, p. 97)
Mito 5: A delimitação “artificial” das fronteiras na África representa uma
das principais causas de conflito entre os Estados e dentro deles
Para o autor explicar a instabilidade política da África, em função do impacto
das fronteiras herdadas do colonialismo não é certo. “As fronteiras seriam
“artificiais”, argumenta-se, por isso causam conflitos entre os Estados ou
dentro deles” (Idem, p.97). Esta teoria será tratada de dois modos. Em
primeiro lugar, “será questionada a utilidade do conceito de
“artificialidade” na caracterização das fronteiras africanas. Posteriormente,
será mostrado que disputas e conflitos fronteiriços não representaram um
problema grave nas relações internacionais dos Estados africanos independentes”
(Idem).
O conceito de artificialidade uma vez aplicado às fronteiras é problemático. “As
barreiras naturais não representam fronteiras no espaço cultural, político ou
econômico, criado pelas sociedades humanas mas, pelo contrário, muitas vezes,
vias de comunicação e interligação.” (Idem), assim, há uma necessidade “de
relacionar a caracterização de uma fronteira com as articulações das atividades
humanas no espaço” (Idem). Por isso, é comum argumentar “que as
fronteiras africanas são artificiais porque elas foram delimitadas,
desrespeitando os espaços culturais, políticos e econômicos criados pelas
sociedades africanas na época pré-colonial”(Idem).
A segunda parte refere-se aos conflitos fronteiriços na África contemporânea. “Em
relação à freqüência de conflitos, podemos afirmar que, desde a época da
descolonização, a África foi o continente com o maior número de conflitos
armados... Embora muitas destas guerras internas tenham uma forte dimensão
regional em termos de simpatia e apoio de combatentes por países vizinhos,
raramente aconteceu um pleno confronto militar entre dois Estados africanos.
Até mais raramente, isto é, somente em dois ou três casos” (Idem, p.
99-100)
Conclusão: enfim, porque as linhas retas sobreviveram com tanto sucesso?
Por fim, o autor mostrará que: “em primeiro lugar, que as fronteiras modernas
na África têm a sua origem no processo da Partilha do continente entre as
potências coloniais européias mas que o papel da Conferência de Berlim de
1884-5 foi muito limitado nesta divisão. Em segundo lugar, foi demonstrado que
a aceitação das fronteiras coloniais durante a descolonização não era
automática, mas o resultado de um processo político complexo, que articulava
várias alternativas e opções. No final deste processo conflituoso de
posicionamento entre os Estados africanos recém-nascidos, temos a ampla
confirmação do status quo territorial e a quase universal adesão ao princípio
de uti possidetis juris, isto é, um consenso entre os Estados, simbolizado e
reforçado pela formação da Organização da Unidade Africana em 1963.” (Idem,
p. 101)
“Certamente, as normas internacionais, a política da OUA e o consenso entre
os Estados africanos no sentido de manter o status quo a qualquer custo
explicam em parte a dureza das fronteiras.”(Idem, p. 102), mas o argumento
utilizado, “acerca da função de fronteiras na África pré-colonial e do caráter
das entidades políticas antes da chegada dos europeus, é igualmente importante”.(Idem).
Outro argumento é “a falta de alternativas às fronteiras existentes. Uma vez
que a África decidiu se integrar à comunidade internacional na forma de Estados
soberanos, foi inevitável, devido ao grande número de etnias, que estes Estados
fossem compostos por várias etnias e culturas... Neste sentido, as fronteiras
atuais, bem como as coloniais, representam uma resposta racional à necessidade
da África de participar no sistema internacional do século XX. (Idem).
Livro Utilizado
DÖPCKE, Wolfgang. “A vinda longa das linhas retas: cinco mitos sobre
as fronteiras na África Negra.” In Revista Brasileira de Política
Internacional, 42 (1): 77-109, 1999.
Por: Zevaldo Sousa
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